A militância e o trabalho de escritores, educadores e artistas indígenas têm sido fundamentais para combater o preconceito e o desconhecimento da sociedade brasileira sobre esses povos, cuja história foi contada principalmente sob o ponto de vista de não indígenas.
No momento em que ocorre na sede da ONU, em Nova Iorque, a 17ª Sessão do Fórum Permanente sobre Assuntos Indígenas, o Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC Rio) entrevistou quatro intelectuais de diferentes etnias indígenas brasileiras sobre formas de garantir direitos e valorizar a cultura e os conhecimentos dessas populações.
“Muita coisa sobre os povos indígenas foi escrita a partir do olhar de um pesquisador, de alguém que vai estudar os nossos povos. Hoje, através dos livros e com o movimento da literatura indígena, que vem se fortalecendo há 30 anos, os escritores estão contando a história do seu povo”, disse o poeta Tiago Hakiy, descendente do povo sateré-mawé.
Nascido em Ribeirinha (AM), Tiago lembra que a oralidade é essência do conhecimento indígena e que muitos dos ensinamentos são passados a partir de "contação de histórias". Assim, a literatura se apresenta como uma ferramenta de preservação da memória desses povos.
Formado em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), o contador de histórias é autor de diversos livros, como "Awyató-pót: histórias indígenas para crianças"; "O canto do Uiarapuru e Guayne derrota a cobra grande". Em 2012, venceu o Concurso Tamoio de Textos de Escritores Indígenas.
Arte militante
O escritor Daniel Muduruku, que já recebeu vários prêmios no Brasil e no exterior, como o Prêmio Jabuti de Livro Infantil, afirma que a literatura tem um papel militante para esclarecer muitos dos equívocos que a sociedade brasileira alimenta a respeito da história dos povos indígenas.
“A nossa literatura é militante, ela tem um papel fundamental de transformar um pensamento equivocado em pensamento real. A população brasileira foi educada a pensar o índio como um ser do passado, do princípio da história”, disse o escritor da etnia munduruku.
Com mais de 30 livros publicados, Daniel, que nasceu em Belém (PA), é graduado em Filosofia, História e Psicologia e doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Para ele, em geral, os brasileiros aceitaram a ideia de um suposto atraso dos povos indígenas, fazendo com que essas populações ficassem escravas de um passado memorial.
“Certa vez eu ouvi: ‘os índios não fazem música, só batem o pé’. Eu me perguntei: como não fazem música? Os índios são grandes compositores e poetas porque a poesia acontece no pular n'água, na tardinha que vai indo, no dia a dia. Tudo isso é poesia para o indígena”, disse a compositora Marcia Kambeba.
Descendente do povo Kambeba, Marcia nasceu em uma aldeia no Alto Solimões, no Amazonas. Ela cursou Geografia na UFAM, mas sua principal atividade é a música. Ela escreve composições em tupi e português e é sempre convidada para palestras e encontros sobre a valorização da cultura dos povos indígenas.
“Pisamos na nossa própria história quando tratamos com preconceito a história do outro. E quem é o outro? É o indígena, é o negro. Os primeiros a pisarem no nosso solo, os primeiros a fazerem música”, ressaltou Márcia.
Extermínio dos saberes
Doutor em História pela USP, Edson Kayapó lembra que o conhecimento científico sempre tratou os saberes indígenas como inferiores. Essa forma de subjugar produz o que o escritor português Boaventura de Sousa Santos chama de "epistemicídio" (o extermínio dos saberes e conhecimentos).
“Os livros de história são perniciosos porque eles ensinam que tudo começou em 1500, e os milhares de anos antes disso são apagados. Os portugueses e europeus admitem que havia pessoas aqui e que eles tiveram dificuldade de reconhecê-las como humanos. Quando as reconheceram, chamaram todos de índio. Esse nome, definitivamente, não representa a nossa diversidade”, afirmou Edson, que também é coordenador da licenciatura intercultural indígena do Instituto Federal da Bahia (IFBA).
Atualmente, há 900 mil indígenas no Brasil de mais de 300 povos e falantes de mais de 250 línguas. Eles já foram 8 milhões, em 1500, segundo a Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
“Na medida em que o diálogo não acontece, as pessoas permanecem na ignorância. Muitos ainda alimentam ideias preconceituosas de que o indígena não pode usar celular, não pode usar roupa, o que faz do Brasil não o país da democracia racial, mas o país do racismo cordial.”
Uma das questões mais preocupantes para os povos indígenas brasileiros é a luta pela demarcação das terras. Atualmente, segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), no Brasil, há 1.296 terras indígenas — 401 foram demarcadas e 306 estão em processo demarcatório.
“Ainda hoje repercute a lógica de ‘tem muita terra para pouco índio’. Para que o índio precisa de terra se índio não planta, é preguiçoso, só fica namorando e tomando açaí? ‘Vamos transformar essas terras produtivas, vamos liberar mais terra para produzir soja’. E aí as populações indígenas são o tempo todo pressionadas”, disse o educador descendente do povo kayapó.
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No Brasil, a pressão do agronegócio é mais dramática no Mato Grosso do Sul. Relatórios preliminares de identificação territorial da FUNAI apontam que as áreas reivindicadas pelos guarani e kaiowá somam cerca de 700 mil hectares, em áreas não contínuas, o que representa 2% do território do estado. A demarcação definitiva destas áreas resultaria na diminuição da violência, que prevalece nas reservas onde ocorreram mais de 450 homicídios e 700 suicídios nos últimos 16 anos.
“Agronegócio é um nome ideológico para identificar uma prática histórica que é a prática do latifúndio, da exploração, da monocultura. Hoje, não é mais capitania hereditária, sesmaria, agora, é agronegócio. Aí a gente vê que, da escravidão indígena às colheitadeiras movidas por satélite, permanece a opressão, a expropriação e uma política genocida que definitivamente não recua”, disse Edson Kayapó.
O Fórum Permanente da ONU sobre Assuntos Indígenas acontece até 27 de abril com o tema “Povos indígenas, direitos coletivos à terra, territórios e recursos".
As reuniões discutem o desenvolvimento socioeconômico e cultural, além de avanços na área da educação, meio ambiente, saúde e direitos humanos. No primeiro fórum, realizado em 2002, as Nações Unidas afirmaram que esses povos tinham “esperanças, direitos e aspirações que devem ser tratados pela Organização”.
Fonte: ONU BR